1. Este Blog

Escrevo em 1º de Janeiro de 2020.

Minha maior realização neste fim de 2019, início de 2020, foi criar este blog para / sobre o Rubem Alves e registrar o domínio rubemalves.com na Internet, que, a partir de agora, remete para cá.

Criar um blog para e sobre o Rubem Alves é o meu jeito de mantê-lo vivo como teólogo sério, filósofo sério, e educador sério, que foi, e de mantê-lo como meu amigo querido do coração (o maior, ao lado de Aharon Sapsezian, que também era amigo dele), que é.

Rubem Alves não foi apenas um acadêmico alternativo, ou apenas um escritor de crônicas, para adultos, e obras de literatura infantil, para crianças, as de fato e as eternas. Essas suas obras são magníficas, mas que foram escritas por força das circunstâncias, não como expressão de sua essência pessoal. Rubem Alves também não foi apenas um palestrante genial que levantava a galera, e que a fazia rir ou se emocionar, ao seu bel-prazer.

A paixão do Rubem Alves era a liberdade. Sua paixão era um mundo sem gaiolas, reais ou do pensamento, um mundo sem dogmas e, por conseguinte, sem dogmatismos, um mundo em que, não havendo dogmatismos, a intolerância é improvável, um mundo em que podemos ir para onde o espírito nos leva, literal ou metaforicamente, andando ou voando como pássaros, sem que um comissário qualquer nos bloqueie o caminho, pedindo que mostremos nosso passaporte e nosso visto, ou o nosso laissez-passer. O mundo do Rubem Alves é um mundo em que podemos voar, literalmente ou em pensamento, para onde queremos, sem precisar provar que temos direito de de ir e vir, de voar para lá ou de volta para cá, porque esse direito é tacitamente reconhecido e por todos afirmado… É um mundo em que, estejamos nós onde estivermos, ou em curso, podemos dizer, oralmente ou por escrito, o que nos vai pela cabeça, sem precisar pedir permissão para ninguém, porque o livre pensar, como dizia o Millôr, é só pensar, e somos livres para expressar em palavras, ditas ao vento ou escritas, em papel, em telas, em chips, em fitas ou em discos, aquilo que pensamos, sem precisar provar que temos esse direito, porque ele é um direito natural…

O que eu admiro no Rubem, acima de tudo, é esse jeito marrento que ele tinha. Se eu quero me considerar protestante, ou presbiteriano, ou até pastor que batiza e faz casamento, com toga branca, com adereços vermelhos, esvoaçantes, e tudo o mais, dizia ele (ou, pelo menos, era assim que ele pensava, mesmo que não o dissesse o tempo todo), quem é que vai ousar me negar esse direito? Quem é que vai ter a coragem de me impedir? Basta que haja alguém que queira que eu o batize, ou que haja um casal, de qualquer natureza, que quer que eu case os dois — ou os três ou quatro, sabe-se lá o que vem por aí…

A Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB) pode ter nos botado para fora, a ele, a mim, e a tantos outros, nos anos 60 e até depois. Protestantes de outras denominações podem nos renegar. Nem mesmo a minha denominação de hoje, a Igreja Presbiteriana Independente do Brasil (IPIB), me deixa viver desengaiolado. Pedi demissão de sua Faculdade de Teologia, a FATIPI, para não criar problemas para seu diretor, que é meu amigo e a quem eu quero muito bem, e não quero que ele pague o preço daquilo que eu penso, digo e escrevo. Mas o Protestantismo não tem Papa, ninguém manda no Protestantismo. Por isso é que há mais de 30 mil — MAIS DE TRINTA MIL — denominações protestantes no mundo e apenas uma Igreja Romana, que se pretende Católica e Universal — e Única. Mas quem quiser se chamar de Protestante, pode se chamar, com toda a legitimidade, porque a marca não pertence a ninguém, não está patenteada. Se os seguidores de Joseph Smith, Ellen White, ou do Rev. Moon quiserem se denominar protestantes, ninguém tem o direito de contestar, como se fosse dono do Protestantismo e estivesse autorizado a lhe fixar os limites. No início do século 20, nos Estados Unidos, os Presbiterianos de inclinação Fundamentalista se acharam no direito de dizer que aqueles que não aceitavam as teses do nascimento virginal de Jesus, ou da ressurreição física e corpórea do Jesus Nazareno, o Rei dos Judeus, ou de que sua morte redimiu os pecados do mundo, ou de que os milagres que a Bíblia diz que ele fez foram reais, ou de que a Bíblia foi literal e verbalmente soprada (inspirada) por Deus aos seus autores, e, por conseguinte, não tem, pelo menos em seus autógrafos, que ninguém mais tem, erro ou falha — que aqueles que fazem qualquer dessas coisas não são Presbiterianos de fato e não podem ficar na Igreja Presbiteriana. No acerto final, foram eles que tiveram de sair. Os outros, que faziam essas coisas, ficaram. Porque, nem mesmo no Presbiterianismo, ninguém é dono da marca. Quanto mais no Protestantismo.

Nós, os protestantes, temos o direito de pensar livremente E DE PROTESTAR, quando tentam nos engaiolar. É essa a nossa essência, a de espernear e de gritar: “Protestante sou eu, que continuo a protestar, que estou sempre me reformando, e não vocês que se deixam congelar numa ortodoxia fria, numa recta doctrina ultrapassada, numa ortodoxia que nunca foi realmente orto, nem mesmo em 1643-1649, NEM LÁ EM WESTMINSTER, e que só se impôs pela força parlamentar, real ou imperial na retaguarda… Enfim, pela espada. Pelo argumento da força, não pela força do argumento.”

Uma igreja que só se preocupa em caçar, cassar, e, daí, novamente caçar hereges, agora para matar, que se preocupa em processar, expurgar, em manter a área limpa de diferenças e diversidades, que ela chama de erro, mas que são expressão da mais lídima liberdade, essa igreja não é Protestante: é Católica. Protestantes, antes do seu tempo, foram Arius, Nestorius e Pelagius. Protestantes foram Andreas Kalstadt, Michel Servetus e Sébastien Castellio. NUNCA FORAM protestantes Constantino, Teodósio, Agostinho, João Calvino e Teodoro Beza — alguns deles, autoridade do poder secular, outros, do poder religioso, outros, ainda, os piores, das duas coisas. Eles eram a autoridade no poder.

Autoritários, no meu livro, na época da Reforma (bem como antes e depois), foram os católicos. Ainda são hoje. São eles que constrangem os divergentes a se curvar, como fizeram com o coitado do Frei Leonardo Boff: impõem a ele um vergonhoso “silêncio obsequioso”. Pior do que proibir uma pessoa de falar é constrangê-la a, voluntariamente, se calar e permanecer quieta, de “livre e espontânea” vontade, enquanto a autoridade quiser que ela fique. Morro de  dó e de vergonha alheia pelo Boff. Ele, além de um coitado, é um babaca por ter aceitado ficar quieto. Belo revolucionário é ele que fica quieto ao primeiro “Cala a boca!” A Igreja Católica é isso. Como as autoridades de hoje, aqui no Brasil, a Igreja Católica quer que o cara cale boca e não possa nem dizer que sua boca foi calada. Ela quer que ele faça de conta que calou a boca porque quis.

Martinho Lutero foi protestante por um tempinho, enquanto ele protestava, enquanto ele era estilingue e a Igreja Católica era vidraça. Quando ele virou autoridade e passou a mandar numa nova igreja, quando ele virou vidraça para os estilingues dos outros, virou autoritário, tanto quanto Leão X. Expulsou Kalstadt de Wittenberg, perseguiu-o, tentou impedir que outras cidades o acolhessem e outras pessoas o acolhessem como pastor, voltou-se contra os camponeses, que eram amigos de Karlstadt… Se Erasmo não acolhesse Karlstadt em Basileia, como depois fez também com Castellio, os dois teriam se tornado combustível de fogueira, como Servetus depois se tornou em Genebra.

Vocês, os autoritários de hoje, são os equivalentes do Papa Leão X de ontem. Nós somos o Lutero Jovem (mas não queremos, como ele, que, assim que ficou mais velho, e ganhou poder, virou um leãozinho (um papinha leão) a passou a perseguir os seus hereges, fazer a mesma coisa que ele). Nós somos aquele Lutero que, diante do Imperador Carlos V e de representantes do Papa, teve a coragem e a ousadia de dizer: “Hier stehe ich: ich kann nichts anders“. (Aqui eu fico, daqui ninguém me tira. Não há como me obrigar a agir diferente, a violar a minha consciência [em tradução livre minha]).

É isso que o Rubem Alves significa. Ele foi, aqui no universo protestante brasileiro, a primícia dos renegados. A primícia daqueles que ousaram dizer: Aqui eu estou, aqui eu fico, daqui ninguém me tira. Tentem para vocês verem… Eu posso não ter mais o meu nome no rol de membros das igrejas que se denominam protestantes. Mas o meu ser, a minha alma, a minha mente, continua protestante. Isso ninguém consegue tirar de mim. Vou continuar assim até morrer. Mesmo que seja numa fogueira em Genebra como Servetus.

O sonho do Rubem, e o meu, era ser professor no Seminário Presbiteriano de Campinas: ele, de Teologia Sistemática, eu, de História da Igreja. Imaginamos algumas vezes, tomando um Jack Daniels, como isso teria sido divertido… A Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB) nos expurgou, a nós dois e a tantos outros que poderiam ter ajudado a igreja a formar um exército de novas e brilhantes lideranças, modéstia à parte. Se apenas ela não tivesse a pretensão de ser uma igrejinha católica de menos de um milhão de membros, fazendo o seu massacrezinho do Dia de São Bartolomeu com os huguenotezinhos liberais brasileiros… Mas, ao nos expurgar, a IPB, sem saber, acabou por nos dar uma audiência bem maior do que uma classe de 20 alunos no Seminário de Campinas.

Este blog vai tentar ampliar essa audiência ainda mais. Inclusive entre os alunos dos atuais Seminários Presbiterianos. A real educação não se faz mais em sala de aula convencional. Faz-se aqui, nas redes do espaço virtual.

Quem ganhou a guerra no Ocidente não foi o reformador Lutero que criou a sua ortodoxia e se tornou perseguidor de hereges, como, em sua visão estreita, seria Karlstadt. Quem ganhou a guerra no Ocidente não foi o reformador Calvin e, que além de perseguir Servetus, concordou que ele fosse queimado em Genebra — com tantos outros, registre-se. Quem ganhou a guerra no Ocidente foi Erasmo, o pacífico humanista, escritor, filósofo, teólogo. Quem ganhou a guerra no Ocidente foram Andreas Kalstadr e Sebastian Castellio, corajosos e intrépidos. Castellio, além disso, foi esperto e hábil, deixou Calvino chupando o dedo. Escreveu tudo, registrou tudo, para a posteridade. Depois, trevas. Tenebrae. O Massacre do Dia de São Bartolemeu (24.8.1572) em Paris e em toda França foi a continuação, em muito maior escala, do que Calvino fez em Genebra com Servetus em 27.10.1553. Só que, desta vez, foram os calvinistas as vítimas. O sinal foi trocado. E os calvinistas não podiam nem chiar, porque poucos anos antes, fizeram o mesmo com Servetus.

Não acredito em determinismo histórico, mas acredito na força e na atração que a liberdade exerce e continuará a exercer sobre mentes fortes, brilhantes e criativas. E corajosas, como a de Castellio. Alea jacta est. “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”.

Assim seja. Amém e amém.

Eduardo Chaves

Salto, 1 de Janeiro de 2020. Levemente revisado em 30 de Maio de 2023. Memorial Day, nos Estados Unidos. Levemente revisado no dia 24 de Agosto de 2023. Dia de São Bartolomeu. Gaspar de Coligny, você está muito mais vivo do que Boanerges Ribeiro. E é assim que vai ser. Fiz mais uma revisãozinha em 22 de Abril de 2024.