Rubem Alves: “A Sentença Primeiro, Depois o Julgamento”

Em meados do primeiro semestre de 1986 José Aristodemo Pinotti completou sua brilhante gestão frente à Reitoria da UNICAMP, exercendo mandato de 1982 a 1986. Nomeado por Maluf, depois de uma crise gigantesca na UNICAMP, a maior de sua história, em que oito diretores, candidatos à Reitoria, como Pinotti, foram destituídos do seu cargo, eu inclusive, Pinotti sofreu forte oposição da esquerda mais radical, que o chamava de malufista para pior. Eu e alguns colegas diretores que havíamos sido destituídos do cargo, lhe demos apoio, apesar da renhida campanha. Pinotti, além de amigo pessoal de Quércia, na época principal cacique do PMDB, também estava bem composto com aquela ala do PMDB que se opunha a Quércia, e que, quando Quércia ganhou o Governo do Estado, saiu do PMDB e criou o nefasto PSDB: Montoro e Covas, em São Paulo, eram seus principais expoentes. Montoro era Governador do Estado e Paulo Renato Costa Souza seu Secretário da Educação.

Nos últimos dois anos do mandato de Pinotti na Reitoria, depois de eu terminar o meu mandato como Diretor da  Faculdade de Educação (fui reconduzido ao cargo por decisão judicial), eu fui o equivalente a Pro-Reitor para Assuntos Administrativos do Pinotti – as Pró-Reitorias, enquanto tais, só foram criadas no finalzinho de seu mandato com a transformação em Pró-Reitorias das Assessorias Especiais.

Antes de deixar a Reitoria, no finalzinho de seu mandato, Pinotti costurou uma sacada de mestre: apoiou Paulo Renato para a Reitoria da UNICAMP com a condição, triangulada com Monto, de que ele substituiria Paulo Renato como Secretário da Educação no último ano do mandato de Montoro.

Tudo deu certo e Pinotti virou Secretário da Educação, com a oposição da esquerda radical – os comunistas propriamente ditos. O PMDB o apoiou naquele momento. Pinotti levou para a Secretaria da Educação Rubem Alves, Ubiratan D´Ambrósio, Fermino Fernandes Sisto, e eu. Eu iria cuidar do Centro de Informações da Secretaria, Fermino da Assessoria Parlamentar, Rubem Alves e Ubiratan D’Ambrósio iriam colaborar conosco na criação de um grande programa que marcasse a curta gestão (só um ano). Tudo indicava que Quércia iria ganhar a eleição para governador pelo PMDB e, se ganhasse, levaria Pinotti (e nós) para a Secretaria da Saúde, o que de fato aconteceu.

O grande programa criado por Pinotti foi o PROFIC – Programa de Formação Integral da Criança. Seu objetivo era criar algo parecido com uma Escola de Tempo Integral sem gastar dinheiro (que não havia). Logo descobri, como Diretor do Centro de Informações Educacionais, que havia enorme capacidade ociosa nas escolas estaduais. A sacada do Pinotti foi aproveitar essa ociosidade para criar programas educacionais extracurriculares nos contraturnos (havia escolas com três turnos diários, mas com capacidade ociosa em todos eles). No PROFIC haveria Informática, Esportes, Artes, Brinquedos, Cuidados de Saúde e Alimentação Adicional (Pinotti era médico).

E o programa visava também a recolher menores carentes das ruas e dar-lhes algum tempo em ambientes escolares, nos contraturnos, pois esses ambientes seriam mais protegidos e acolhedores do que as esquinas e as praças.

Os esquerdopatas imediatamente rotularam o programa de assistencialista e eleitoreiro e, por conseguinte, conservador e reacionário. Recorreram aos seus comparsas até no Conselho Estadual da Educação. Gente de dentro da Secretaria, como Miriam Jorge Warde, e de fora, como meu colega da UNICAMP Dermeval Saviani, se juntaram. Mas a gente tinha bala na cartucheira e aguentou bem a briga.

Como parte da briga o Rubem Alves escreveu um artigo que eu reencontrei hoje, fuçando em minhas relíquias. Tem o título de “A Sentença Primeiro…”, e, como mote, a seguinte frase lapidar: “Para os amigos não é preciso explicar; para os inimigos, é inútil explicar”.

Como não tenho o texto em formato digital, redigito o artigo a seguir. Tenho o texto original, datilografado e editado pelo próprio Rubem, e eu fiz a revisão final, por ordem do Pinotti.

A Sentença Primeiro, Depois o Julgamento…

Para os amigos não é preciso explicar;
para os inimigos, é inútil explicar.

Ninguém sabe os números ao certo. Os mais otimistas ficam por volta dos 15 milhões. Mas há muitos que dizem que a verdade está mais próxima dos 30 milhões. São estes os números dos menores carentes, abandonados, infratores, das crianças brasileiras que andam sozinhas pelas nossas cidades, como que perdidas no mundo, sem lugar certo onde comer ou dormir.

Muitos deles passaram por nossas escolas. Mas saíram logo. Perceberam que as lições que ali se ensinavam eram para um outro mundo, diferente daquele em que elas tinham de viver, selva onde quem é fraco ou bobo apanha e morre. Mesmo aqueles que teimavam e persistiam logo aprendiam que, para eles, quase não há alternativas. Depois da escola, não tinham para onde voltar. Não conheciam o que era casa e lar. Só conheciam um barraco vazio. Quando lá chegassem, o pai estaria fora. Também a mãe. Ambos estariam nos empregos, nos biscates, nas virações. Razões para ficar ali dentro não havia. Os barracos eram pobres e feios. Tinham paredes nuas. Não havia ali brinquedos e nem lugares onde brincar. Livros, nem se fala. Tudo era uma enorme solidão, um abandono sem fim. A rua era melhor. Mais aberta e desafiadora. Lá estava a luz, a criançada, a gente grande, a vida, tal como acontece. Lá estavam os jeitos que se aprende de descolar um dinheiro, de cheirar uma cola, de furtar algo que se deseja ou que se pode trocar por algo que se deseja. E vai-se aprendendo então um outro currículo, sem cartilhas, sem planejamento adequado à realidade, sem avaliação: o mundo, tal como ele é. Ah, como são fracas as escolas só de ideias nas cabeças e palavras nas cartilhas! Como dizia alguém, faz um século, “não é a consciência que faz a vida, é a vida que faz a consciência”. O mundo não começa no currículo, mas no lugar onde se trava a batalha pela existência. E desta escola vão se formando, sem diplomas, trombadinhas, assaltantes, e criminosos destinados às FEBEMs e às penitenciárias. Gente que vai matar ou morrer, gente destinada à tristeza sem fim da desesperança. E nós vemos isto ir crescendo, e cresce também o nosso medo, e nem mais sabemos o que fazer. Logo  nos vêm sugestões loucas, que para alguns são as únicas cabíveis: aumentar o potencial de fogo da polícia, multiplicar as prisões, criar até mesmo campos de concentração e até mesmo, ao final, reinstituir a pena de morte que já tivemos. Esquecêmo-nos de que cada criminoso foi um dia uma criança que passou bem perto de nós. Se tivéssemos tido amor e vontade, talvez o seu destino pudesse ter sido mudado. Há coisas que podem ser feitas, mas apenas se quisermos.

E foi isto que se pensou. Quem sabe há sobras que podem ser usadas? Isto mesmo: começar com as sobras. Os espaços vazios de nossas escolas, ociosos, o tempo em que ficam desocupados. E outros espaços que porventura existam em instituições públicas ou privadas interessadas em cooperar. Se eles forem abertos para estas crianças que não têm para onde voltar, sim,  se houver espaços livres e protegidos, onde elas possam ficar um pouco mais, quem sabe até que a mãe ou o pai volte do trabalho, talvez elas possam ter mais chances. Talvez as lições aprendidas tenham mais tempo para germinar e nascer. Nada complicado: só o espaço livre, para brincar, quem sabe fazer as lições, ler um pouco, aprender coisas diferentes, ouvir estórias, viver um outro tipo de relação com os professores. Não, ninguém seria obrigado. Nem todas as escolas têm espaços livres. Nem todas as pessoas têm vontade de trabalhar numa coisa assim. O programa se desenvolveria apenas onde houvesse sobras, especialmente aquelas sobras que só o amor e a vontade têm o poder de descobrir ou inventar. Não se tiraria nada do que existe. A escola, tal como tem sido, continuaria, do mesmo jeito, pobre e fraca como já é, sem ser mais empobrecida e enfraquecida, sem sequer ser mudada naquilo que não desejasse mudar. Bastaria acrescentar algo às suas instalações, para quem quisesse participar, aproveitando as sobras. E assim poderíamos disponibilizar esse espaço protegido onde nossas crianças pobres pudessem passar um pouco mais do seu tempo, abrigadas, sem medo, comendo aquilo que não iriam encontrar em suas casas vazias.

Ideia bonita esta, de tornar possível à escola que seja também protetora. Pois que adianta somente ensinar, se se sabe que a luta pela vida vai ensinar outras lições? Para que haja um saber é preciso, antes de mais nada, que exista um corpo em que esse saber possa crescer… Ideia tão absolutamente simples, que até se pensou que era óbvia demais para requerer ênfase, que nem seria necessário explicar. Era difícil imaginar que qualquer pessoa pudesse se opor a essa ideia, pois qualquer coisa que se possa fazer pelos nossos Pixotes é coisa a ser prontamente acolhida, apoiada e ajudada.

Mas o inesperado aconteceu. E aí, para o nosso espanto, todas as explicações parecem inúteis…

Disseram, primeiro, que o PROFIC (foi esse o apelido que a ideia recebeu) violentava a especificidade da escola, que a escola é instituição onde os professores ensinam e os alunos aprendem, e que não é sua função cuidar de menores abandonados. Disseram que o programa era assistencialista! Me lembrei então que esta conversa sobre a especificidade da escola eu já ouvira de outras bocas. No tempo da ditadura, quando a gente tentava fazer algo diferente, mais político, nas escolas, vinha a repressão para dizer que a especificidade da escola é ensinar as coisas básicas e que a função do aluno é aprender. E me admirei que tivéssemos memória tão curta e que aquilo que ontem esteve na boca dos generais estivesse hoje na boca de outros.

Por outro lado, a especificidade das instituições não é algo que cai dos céus pronta. No caso da escola, não há uma metafísica da escola que a justifique. Tudo é historicamente construído — não é isso que eles repetem sempre, em nossos catecismos políticos? Pois a especificidade também. Se nós, por um ato de vontade, decidirmos que a escola vai, além de ensinar, proteger, será esta a missão da escola, e será isto que se deverá escrever em nossa futura Constituição. E se há 30 milhões de crianças carentes, abandonadas e infratoras, fazer de conta que isso não existe, e dizer que a escola, por sua especificidade, não tem nenhuma responsabilidade nessa área, não passa de alienação e irresponsabilidade.

Depois disseram que esse tipo de ação está fora de época. Que estamos em fim de mandato. Em fim de mandato (pelo que pude entender do argumento) não se faz nada. Porque, se se faz alguma coisa, ou é medida eleitoreira, ou é algo que está condenado a desaparecer no governo seguinte. Cada administração destrói sempre o que a anterior fez.

Fico a imaginar se o problema fosse uma epidemia de febre tifoide, ou outra praga qualquer… Será que alguém teria coragem de dizer que as medidas de saúde pública propostas eram “extemporâneas”, como dizem os críticos do PROFIC? Claro, tudo tem que ver com prioridades. A epidemia é perigo para qualquer um, até os ricos. Mas há muitos que parecem não sentir que 30 milhões de menores carentes, abandonados, ou infratores, seja tragédia maior do que qualquer epidemia.

Alegam, também, que o PROFIC é coisa conservadora, paliativa, que não vai até a raiz do problema. Que não vai resolver o problema, bem o sabemos. Também a insulina que o diabético toma, todo dia, não o cura do seu mal. Mas ajuda. Torna possível que ele leve uma vida perto do normal. E não é assim que agimos, no dia a dia? Quem só se dispõe a lutar por soluções definitivas para os problemas está condenado à paralisia prática. Fica impossibilitado de construir, pois nada é radical que chegue. E se transforma então em um perito em demolições. Tudo o que os outros pretendem fazer vira objeto de sua “consciência crítica”.

Declaram que a criação deste espaço novo para as crianças pobres não é uma prioridade no momento. Afirmam que há coisas mais urgentes a fazer. Mas prioridade é coisa abstrata: é socialmente construída (não é isso que reza seu catecismo)?. Para as classes ricas, um novo aeroporto pode ser uma grande prioridade. Mas para o favelado que mora em barraco, uma torneira de que jorre água potável é mais importante. Concordamos que o PROFIC possa não ser uma prioridade para os seus críticos. Mas eu gostaria de passar a palavra aos trinta milhões e ouvir o que têm a dizer eles próprios, seus pais e suas mães…

Ideia tão simples. Há os menores abandonados. Há o sofrimento. Há a violência. Há também grandes espaços vazios que podem ser usados. E muitas pessoas que estão com vontade – só elas, ninguém que não tiver vontade será obrigado a participar. Por que não fazer, então? É diante disso que as críticas ficam incompreensíveis. Não se trata de um mal-entendido a ser resolvido por mais explicações e por explicações mais claras e distintas. Não houve nenhum mal-entendido entre o cordeiro e o lobo. Curioso, coisa que talvez a psicanálise e a sociologia do conhecimento possam elucidar: parece que a compreensão do projeto é tanto mais fácil quanto mais próximas estão as pessoas das crianças fragilizadas. Professores e professoras, diretamente ligados à meninada, parecem extraordinariamente compreensivos. Mas, à medida em que se sobe no escalão para os níveis mais altos do poder, o que era simples passa a ser complicado, e aquilo que era um programa para ajudar crianças pobres passa a ser um truque político. Pois é: o pensamento sempre se move dentro dos limites de nossos interesses dominantes.

Ideia tão simples. O que torna difícil compreender a violência e a substância das críticas. A menos que Lewis Carroll tenha razão e no mundo da política as coisas às vezes aconteçam como no julgamento do roubo das tortas, em que a rainha gritava:

“A sentença primeiro. O julgamento vem depois!”

Transcrito aqui neste blog em Salto, 4 de Janeiro de 2002.

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