Rubem Alves: “Liberdade e Ortodoxia – Opostos Irreconciliáveis”

Na dedicatória que apôs à cópia de Protestantismo e Repressão que me deu em 1979 (fez  40 anos neste ano que passou), o Rubem Alves escreveu: “Ao Eduardo, em memória de um passado comum”. A dedicatória vem logo acima do mote do livro, uma linda passagem de Leszek Kolakowski, muito amada pelo Rubem, e que ele citou em mais de um livro:

“Por que deveria qualquer pessoa, inflexivelmente convencida da verdade exclusiva dos seus conceitos relativos a qualquer e a todas as questões, estar pronta a tolerar ideias opostas? Que bem pode ela esperar de uma situação em que cada um é livre para expressar opiniões que, segundo o seu julgamento, são patentemente falsas e portanto prejudiciais à sociedade? Por que direito deveria ela se abster de usar quaisquer meios para atingir o alvo que ela julga correto?”

Rubem Alves ressalta, em sua “Nota Preliminar” que a “Ortodoxia Protestante”, com seus “mecanismos de controle de pensamento e repressão do comportamento, [está] em evidente oposição à tradição ideológica clássica do Protestantismo, com sua ênfase na liberdade de consciência, livre exame e democracia”.

Entre Protestantismo e Repressão, de 1979, e sua reedição como Religião e Repressão, em 2005, Rubem Alves mudou profundamente sua atitude para com a religião… Deixou de tratá-la como objeto de um discurso acadêmico, científico, rigoroso, para tratá-la mais como poesia, como literatura. . .

Na nota “Trinta Anos Depois” cita Fernando Pessoa e conclui que “somos assim”: sonhamos voar, mas temos medo das alturas, sonhamos com a liberdade, mas preferimos o abrigo seguro das certezas…

Afirma, na mesma nota, que as religiões, em regra, têm tendência de se tornarem gaiolas que procuram prender pássaros que gostam de voar. Em geral, os hereges “são os pássaros que recusam as gaiolas de palavras que os prendem, que falam palavras proibidas”.

Continua ele, em espírito de confissão: “Vivi, durante muitos anos, numa gaiola de palavras. Eu gostava dela. Não me sentia engaiolado. Sentia-me protegido. Minha gaiola era minha armadura”.

Sua nota é um desabafo… Registra que, durante a Ditadura Militar, os grupos protestantes que, no Brasil, “anda[vam] sempre a pé”, “se apressaram a montar na garupa dos militares” – e, além de expulsar os hereges de seus seminários, resolveram entregá-los ao poder secular “sob a acusação de subversão e comunismo”.

Ironicamente, a Igreja Católica que, na época da Reforma, declarou Lutero herege e o excomungou e perseguiu, por pouco não o colocando na fogueira, tornou-se, no Brasil da Ditadura Militar, “uma gaiola com portas abertas”, encarnando, como diz o Rubem Alves, “o espírito libertário que se encontra nas origens do protestantismo”.

Mas o Rubem conta que um dia perguntou a Dom Helder Câmara se não haveria “um lugarzinho” para ele, Rubem, na Igreja Católica… A resposta de Dom Helder foi realista, sem nenhum romantismo: “Não se engane. É tudo igual…”. Triste. A porta da gaiola gradualmente se fechou e calou os que “ensaiavam cantos diferentes”, aos quais se impôs o famigerado “silêncio obsequioso”. Pior do que tapar a boca de alguém é exigir que ele próprio a mantenha fechada. . .

“Para engaiolar a verdade”, conclui Rubem Alves, “é preciso engaiolar a liberdade e o pensamento”.

Que falta nos faz o Rubem…

[Escrevi o que consta até aqui em São Paulo, 29 de Julho de 2014, dez dias depois da morte dele, em 19 de Julho daquele ano. Daqui para frente escrevo em 5 de Janeiro de 2020, para inclusão  no blog Rubem Alves que criei ontem.]

Achei hoje mais uma relíquia do Rubem. Um artigo chamado “Liberdade e Ortodoxia – Opostos Irreconciliáveis: Notas Preliminares para o Exame do Problema no Protestantismo”. Foi publicado como Documento 84, em Abril de 1978, do Centro Ecumênico de Informações. Tem oito páginas, que eu consegui escanear e tornar um arquivo .pdf.

Nesse artigo Rubem fornece o Sitz im Leben do que escreveu. Aqui vai:

Rubem-Alves-Liberdade-e-Ortodoxia

Em Salto, 5 de Janeiro de 2020 (revisto em 6 de Janeiro de 2020)

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