Rubem Alves: “Prefácio” a um Livro de Eduardo Chaves

[Prefácio que o Rubem Alves escreveu ao meu livro Educação e Desenvolvimento Humano: Uma Nova Educação para uma Nova Era (Mindware Education & Amazon Kindle Publishing,  2003, 2019), tanto em sua primeira como em sua segunda edição, que saiu quando ele já havia morrido.

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Prefácio – Rubem Alves

Quero, preliminarmente, esclarecer o leitor sobre a minha maneira de ler, pois é ela que determina minha maneira de escrever. Eu leio antropofagicamente: devoro os livros que amo. Depois de devorá-los eles entram no meu sangue. Circulando no meu sangue deixam de pertencer ao autor: passam a ser parte de mim. Assim, ao escrever sobre um livro, escrevo sobre ele tal como foi por mim digerido amorosamente. Tolo seria um homem apaixonado que, ao escrever sobre o jantar que sua amada lhe preparou, transcrevesse as receitas dos pratos que foram servidos… Assim, não vou transcrever e nem resumir. Vou falar sobre aquilo que esse livro fez comigo depois de digerido…

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Digo primeiro que a leitura desse livro me fez ficar alegre. E isso porque, ao lê-lo, dei-me conta de que eu e o Eduardo estamos fazendo um dueto, tocando a mesma música…

Vou explicar. Eu e o Eduardo temos sido amigos por muitos anos. Nossa amizade se iniciou na juventude, porque andávamos pelo mesmo caminho. Naqueles tempos escolhemos o caminho que, acreditávamos, nos levaria aos deuses. Estudamos no mesmo lugar, lemos os mesmos livros de teologia e brincamos com as mesmas idéias.

Mas o tempo passou e nós mudamos. Talvez por razões diferentes abandonamos o caminho dos deuses com as suas certezas e resolvemos caminhar por caminhos mais modestos e mais humanos. Seguimos o conselho do poeta alemão Heine: deixamos os céus aos anjos e aos pardais…

Mas não seguimos juntos. Apareceu uma bifurcação e aí nos separamos: eu fui por um lado e o Eduardo foi por outro. E assim vivemos por vários anos, caminhando por caminhos diferentes. Mas nunca deixamos de ser amigos. Até ríamos das nossas diferenças. Rafael pintou uma tela em que aparecem, caminhando lado a lado, os filósofos Platão e Aristóteles. Conversam enquanto caminham. Mas a tela deixa claro que eles não estavam de acordo. Platão aponta para cima enquanto a mão de Aristóteles sugere os caminhos de baixo… Platão quer as alturas; quer ser ave. Aristóteles, talvez se lembrando do destino trágico de Ícaro, indica os caminhos da terra, mais seguros para criaturas desprovidas de asas. Assim éramos nós… O Eduardo e eu chegamos mesmo a imaginar um jogo de palavras. Se eu dissesse Platão ele responderia com Aristóteles. Se eu falasse Santo Agostinho ele invocaria Santo Tomás de Aquino. Se eu propusesse Lutero, ele contraproporia Calvino. Ao meu Pascal ele retrucaria com Descartes. E se ele dissesse Hume e Kant eu diria Nietzsche e Kierkegaard…

Eu segui o caminho da literatura e da poesia, onde só se fala por meio da imprecisa e ambígua linguagem das imagens e das metáforas. O Eduardo, ao contrário, preferiu o rigoroso e paciente caminho das idéias claras e distintas, da lógica e da razão, e não foi por acidente que ele escolheu como tema da sua dissertação de doutorado o pensamento do filósofo Hume.

Mas estes não são caminhos contraditórios. Tanto a emoção quanto a razão são manifestações da vida. A vida, só com a razão, é monótona e triste. E a emoção sozinha, sem a razão, é frágil e efêmera. É do seu encontro amoroso que universos são gerados.

Há pessoas que conseguem de forma maravilhosa brincar com as duas ao mesmo tempo. Tal é o caso de Gaston Bachelard que, por um lado, escreveu livros filosóficos clássicos sobre epistemologia e filosofia da ciência e, ao mesmo tempo, obras de rara beleza e sensibilidade poética, tais como “A Chama de uma Vela” e “A Poética do Espaço”. Havia o Bachelard diurno e o Bachelard noturno…

Os dons não são escolhas nossas. Não escolhemos a nossa maneira de pensar e de escrever. Milan Kundera, no seu livro Os Testamentos Traídos, observa que os pensamentos de um filósofo não são produtos deliberados de uma decisão consciente. Os pensamentos, ele acrescenta citando Nietzsche, vêm “de fora, do alto ou de baixo… Um pensamento vem quando ‘ele’ quer…” (p. 135). Assim aconteceu conosco. Eu não escolhi o meu jeito de pensar e escrever. E o Eduardo não escolheu o seu. Os pensamentos nos escolheram, cada um a seu modo. E a minha alegria está precisamente nisso: que havendo caminhado por caminhos diferentes por tanto tempo, agora nossos caminhos se encontram e começamos a tocar a mesma música…

Digerido, o livro me fez pensar.

A propósito do livro best-seller Inteligência Emocional, o Eduardo observa que a questão não é fazer com que a inteligência se torne emocional. (Na verdade, eu pessoalmente não acredito que isso seja possível e nem que seja desejável). E observa: “Não é a inteligência (razão) que deve se tornar emocional: é a emoção que deve se tornar inteligente”. Isso sim é desejável, possível e necessário. Na ordem da vida a emoção é a origem de todas as coisas. É nela que se encontra a força propulsora da ação. Os sonhos são o rosto visível das emoções. Deus sonhou primeiro e agiu depois. Sonhou com um paraíso e foi desse sonho que surgiu o verbo criador. No princípio era o sonho… Mas o sonho sozinho com suas emoções não nos diz o que fazer para realizá-lo. Por outro lado, sem o sonho, a inteligência permanece flácida, impotente e inútil… O sonho precisa de um aliado que o torne forte. Parafraseando o poeta William Blake: “O sonho engravida. A inteligência faz parir.” Nietzsche, que seguia o caminho da emoção, tinha clara consciência disto. Dizia que o corpo, lugar das emoções e dos sonhos, é o início de todas as coisas e o chamava de Grande Razão. E é essa Grande Razão, bela e impetuosa, que cria a inteligência, a “pequena razão”, como uma ferramenta e um brinquedo para os seus sonhos. Para quê? Para que os sonhos não permaneçam apenas sonhos. Para que os sonhos se transformem em realidade. Para que a gravidez se realize em nascimento…

O que é este livro? Ele é uma exploração meticulosa, exaustiva, detalhada, clara, dos caminhos a serem seguidos para dar inteligência à emoção. Minha alegria está nisso: que o Eduardo fez aquilo que eu mesmo não fiz.

Dar inteligência à emoção… Isso nos permite dizer o que uma escola deveria e poderia ser. Uma escola é um tempo-espaço onde as crianças têm liberdade para sonhar e compartilhar seus sonhos. Mas mais do que isso: é um tempo-espaço onde elas, no exercício da inteligência, criam as competências necessárias para que seus sonhos se realizem.

Uma boa metáfora ilumina mais que uma dúzia de conceitos. O Eduardo se vale da metáfora da construção de uma casa para explicar a maneira como se aprende. Trata-se de uma metáfora fácil de ser entendida porque, afinal de contas, temos estado repetindo que aprendizagem é construção…

Onde se inicia a construção de uma casa? Na compra do terreno? No financiamento? Na casa dos materiais de construção? Na planta do engenheiro? Não. Uma casa não começa nesses lugares sólidos. Ela começa num lugar frágil, que nem mesmo existe. Uma casa começa num desejo, naquele momento em que uma pessoa diz: “Como seria bom seu eu pudesse construir uma casa!” O desejo é como um feto: a princípio não se percebe nele qualquer forma definida. Mas à medida que ele cresce, ganha um rosto. Torna-se visível como sonho. É o que disse Fernando Pessoa: “O meu desejo porque é forte entra na substância do mundo.”

“No princípio era o sonho…” O que vale para uma casa vale também para todas as criações, das mais simples às mais complexas: vale para um jardim e uma catedral, para um carrinho de lata de sardinha e uma nave espacial, para um assobio e uma sinfonia. “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce…” (Fernando Pessoa). Polya, matemático da Universidade de Princeton, escreveu um enorme livrinho sobre a arte de resolver problemas. O seu primeiro conselho é “comece do fim”. Não é assim que procedemos ao planejar as férias? Primeiro sonhamos o lugar para onde queremos ir. A seguir o sonho pergunta à inteligência: “Qual é o caminho para se chegar lá?” E é assim também que acontece com a vida, que é o maior projeto de construção que qualquer pessoa possa ter, porque o que está em jogo é o sonho do que queremos ser. A escola é precisamente o lugar onde os sonhos das crianças põem suas inteligências a trabalhar para que elas possam ser o que desejam ser.

Sim, as escolas são tempos-espaços em que as crianças se constroem. Mas é preciso perguntar: De quem são os sonhos? De quem é o projeto? Quem tomou as decisões?

Para a educação tradicional a resposta é muito clara. “A educação é algo que os adultos (‘as gerações mais velhas’) fazem com as crianças (‘as gerações mais jovens’)”. Desta forma, ela atribui “aos adultos (pais, professores, etc.) o papel de atores principais no processo educacional.” Às crianças “cabe apenas assimilar o que os adultos desejam que elas aprendam.” Na escola tradicional, crianças ficam quietas e prestam atenção. “Aprender”, ali, “é um processo essencialmente passivo, que têm lugar principalmente quando elas ouvem e lêem”. Paulo Freire deu o nome de “educação bancária” a esse tipo de procedimento escolar: as crianças e os alunos são cofres vazios onde os adultos vão depositando os saberes que os programas determinam. Essa imagem bancária da educação é muito verdadeira porque foram as próprias escolas que a adotaram ao empregar a palavra “crédito” para se referir aos cursos que um aluno cursou.

Aos alunos cabe o silêncio… Na verdade pressupomos que as crianças são estúpidas e nada sabem. Não podem, portanto, opinar e decidir sobre os seus rumos nas escolas. A educação tradicional, assim, ignorando que as crianças têm sonhos e têm o direito de sonhar, impõe sobre elas desejos que não são delas, desejos dos adultos, para que elas deixem de ser elas mesmas e se tornem outras. Haverá forma mais cruel de alienação? Pois alienação não é precisamente isso, esquecer os próprios sonhos e passar a sonhar os sonhos de um estranho? O que me faz lembrar um doloroso verso de Álvaro de Campos: “Não existo. Sou o intervalo entre o meu desejo e o que os desejos dos outros fizeram de mim…” Por causa disto Alberto Caieiro se entregou à tarefa de desaprender tudo o que lhe haviam ensinado, para que pudesse voltar ser ele mesmo…

Na escola tradicional o professor vai seguro para a sala. Sua aula está preparada. Ele segue o programa. Não haverá surpresas. Ele sabe o que vai falar. É ele quem vai dar o tema. Se uma criança fizer uma pergunta enviesada ele dirá que em outro lugar do programa ela será respondida. Às crianças compete prestar atenção, escutar. O ato de avaliação, que freqüentemente decide o destino de uma criança, tem o preciso objetivo de verificar se as crianças ouviram bem o que lhes foi falado, se elas internalizaram os saberes determinados por outros, outros que não estão lá…

O que está pressuposto por detrás dessa prática é que as crianças são tolas. Nada sabem. O que têm a dizer não é para ser levado a sério. Se as escutamos é por um mero ato de delicadeza. Não é um escutar de verdade, para aprender delas. É um escutar de “faz de contas”…

Mas não são poucos aqueles que perceberam o contrário. Bernardo Soares se refere à “diferença hedionda entre a inteligência das crianças e a estupidez dos adultos.” Ricardo Reis, num poema sapiencial, diz que é preciso viver “tendo as crianças por nossas mestras e os olhos cheios de natureza”. Nietzsche, que os doutos professores universitários dos seus dias nunca entenderam, refugiava-se nas crianças e dizia que o máximo de maturidade que um adulto pode atingir é quando ele tem a seriedade que as crianças têm ao brincar. Novalis contemplava as crianças e se encantava: “O primeiro homem é o primeiro visionário de espíritos. O que são as crianças, senão primeiros homens? O fresco olhar da criança é mais transcendente que o pressentimento do mais resoluto dos visionários.” E Janusz Korczak, o educador polonês judeu que morreu numa câmara de gás nazista com suas crianças, escrevendo aos professores, disse: “Vocês dizem: ‘Cansa-nos ter de conviver com as crianças’. Têm razão. Vocês dizem ainda: ‘Cansa-nos porque precisamos descer ao seu nível de compreensão’. Descer. Rebaixar-se, inclinar-se, ficar curvado. Estão equivocados. Não é isso o que nos cansa, e sim o fato de termos de elevar-nos até alcançar o nível de sentimentos das crianças. Elevar-nos, subir, ficar nas pontas dos pés, estender a mão. Para não machucá-las.”

O fato é que as crianças são inteligentes. Suas inteligências ainda não foram petrificadas pelo hábito. Seus olhos se espantam com todas as coisas. Querem saber. São curiosas. Investigam. O dedinho da criança procurando buracos onde enfiá-lo é um maravilhoso símbolo da sua curiosidade. “Ninguém precisa ensinar uma criança pequena a aprender”, diz o Eduardo citando Peter M. Senge. “Na verdade, ninguém precisa ensinar nada a uma criança pequena. Elas são infinitamente inquisitivas, aprendentes competentes que aprendem a andar, a falar e a basicamente mandar em suas casas, tudo sozinhas.”

Uma Nova Escola tem de se iniciar com uma transformação amorosa na nossa imagem da criança. Reconhecer que todas as crianças – na verdade, todas as pessoas – têm sonhos. Mais do que isso: que elas têm direito aos seus sonhos, porque seus sonhos são a sua alma. E que são os sonhos que determinam o programa: são eles, os seus sonhos, que dizem quais são os saberes a serem buscados. Porque todos os saberes só têm uma função: a de permitir que os sonhos sejam realizados. Quando um sonho se realiza vem a alegria. Todo o trabalho para a realização dos sonhos é um trabalho feliz. Mesmo o trabalho penoso. Lembro-me de Oswald de Andrade, no “Manifesto Antropofágico”: “A alegria é a prova dos nove…”. O espaço-tempo da escola, assim, se organiza como uma oficina onde as crianças são encorajadas a sonhar os seus próprios sonhos. Nenhum sonho será jamais castigado. É um espaço feliz. E o professor se descobre então como um provocador e escutador de sonhos…

Isso produz uma perturbação nas rotinas do professor. Na escola tradicional todos os saberes estão definidos pelo programa. O professor é o portador desses saberes. Sua missão é fazer com que as crianças aprendam. Mas agora esse programa fixo deixa de existir. Serão os desejos e sonhos dos alunos que indicarão quais os saberes que lhes serão necessários no seu projeto de vida. Crianças nas praias do Nordeste, nas montanhas de Minas, nas florestas da Amazônia, nos bairros ricos das grandes cidades, nas favelas, nos pequenos vilarejos pobres – quantos sonhos diferentes! Quantos projetos de vida diferentes! Seria, por acaso, possível, submetê-las a um programa único? Impossível. Serão as crianças que dirão os seus sonhos e pedirão ao professor: “Ajude-nos a realizá-los!” E o professor perceberá que ele não tem respostas para as perguntas que lhe vêm dos alunos. Ele não sabe! Ele terá de dizer que não sabe. E isso não será vergonhoso. Ninguém sabe todas as coisas. Ele não sabe as respostas. Sua função não é ensinar respostas. Sua função é ajudar os alunos e a si mesmo a perguntar e a procurar as respostas.

É preciso que nos libertemos da insensatez dos programas prefixados e universais. Eles pressupõem que aqueles são os saberes que as crianças devem aprender, sem explicar por quê. Qual o sentido dos nomes das enzimas que entram no processo digestivo para um adolescente de periferia? O que pode ele fazer com aqueles nomes? E pressupõem ainda que os alunos são todos iguais. E que devem aprender as mesmas coisas. No mesmo ritmo… Nenhum desses pressupostos se justifica psicologicamente.

Por vezes o absurdo literário nos ajuda a compreender o absurdo real. Imaginemos que um homem decidido a construir uma casa vá a um depósito de materiais de construção e se ponha a fazer um estoque de todos os produtos que ali se encontram. Afinal de contas, ele vai construir uma casa e aquele é o lugar onde estão estocados os materiais para a construção de uma casa. Claro que isso é um absurdo. Ninguém procede assim. Só um louco. O que todo mundo faz, orientado pelo senso comum, é ir comprando os materiais à medida que se tornam necessários. Mas aquela é, precisamente, a filosofia dos programas: os alunos são obrigados a aprender os saberes que, hipoteticamente, irão usar um dia, eventualmente… Não seria muito mais racional ir aprendendo os saberes à medida que se tornarem necessários à construção do projeto de vida?

Tenho dó dos professores sabedores dos programas. Porque a cada ano eles são obrigados a andar pelos mesmos caminhos, a repetir as mesmas coisas. Fazem-me lembrar os guias turísticos que, dia após dia, levam os turistas aos mesmos monumentos e mecanicamente repetem as mesmas informações. É uma monotonia sem fim! Não admira que, com o transcorrer dos anos, a alegria desapareça dos seus rostos e eles desaprendam a arte de sonhar! Passam a sonhar com a aposentadoria… Mas, indo ao sabor dos sonhos das crianças a cada dia eles terão de enfrentar o desafio de mundos desconhecidos e a surpresa de coisas novas! E ficarão mais ricos. E mais interessantes. Esse é um projeto de vida que vale a pena!

Para que aprender? O corpo aprende para se tornar mais eficiente para resolver os problemas vitais do dia a dia. “Saber por saber! Isso é desumano!”, dizia Miguel de Unamuno. Tecnologia são todos os artifícios inventados pela inteligência para aumentar a competência do corpo para resolver os problemas vitais. Marshall McLuhan observou que todos os produtos tecnológicos, da cuia ao computador, são extensões dos nossos membros e da nossa inteligência. Saberes são ferramentas. No mundo há milhares, milhões de ferramentas. Eu nunca usarei todas. Portanto, não tenho de aprender todas. Aprenderei as ferramentas que me são necessárias para viver. É esse “para viver” que dá sentido ao conhecimento. Assim, aprendemos para nos tornar competentes.

O que é competência? Menino, eu tinha inveja do meu pai. Ele descascava laranjas como ninguém: cascas inteiras, sem ferir a laranja. Eu queria ser como ele. Para isso eu teria de aprender várias coisas. A segurar o canivete. A amolar o canivete. A segurar a laranja. A girar a laranja. A cortar a casca no ângulo certo. Ninguém me disse que aprendesse. Ninguém me ensinou. Aprendi sozinho porque queria. Me esforcei até que fiquei competente. Descasco laranjas como o meu pai. Esse saber não se encontra em nenhum programa…

Competência é ter a capacidade para resolver os problemas que nos desafiam no dia a dia. Muito cedo, sem que ninguém saiba como, a criança adquire competência para andar. Com isso ela resolve o problema de deslocar-se no espaço. E aprende a falar. Com isso ela se torna competente na comunicação. O menino que roda o pião ficou competente em rodar pião. A menina que pula corda ficou competente em pular corda. O jovem que toca violão se tornou competente em tocar violão. Para isso foi necessário que o seu sonho fosse muito forte. Se ele não sonhasse forte ele não teria paciência… Sempre que o sonho é forte a inteligência trabalha com paciência e persistência. Não é preciso que ninguém lhe dê ordens.

A vida é feita de competências. Corrijo-me. A vida é feita de sonhos e competências. São os sonhos que buscam as competências. As competências nos dão os “meios para viver”. Os sonhos nos dão as “razões para viver”. As competências existem para que os sonhos se realizem.

É possível que a imprensa tenha sido a tecnologia que mais revolucionou a educação. Ela foi capaz de colocar o mundo dentro de um livro. E dentro de uma sala de aulas. Mas, para fazer essa tarefa fantástica ela teve de se valer de um artifício: transformou o mundo multidimensional, desorganizado, sempre em mutação, numa linha contínua de palavras. Para que as palavras façam sentido é preciso que os olhos deslizem sobre elas, da esquerda para a direita, sem saltos. O problema de um escritor é sempre esse: colocar numa linha aquilo que não existe em linha… A escrita determinou nossa maneira de pensar o mundo: pensamos o mundo através de uma linha reta deslizante. À moda de uma centopéia, sem pulos.

Vieram então os computadores. E a Internet. Com isso surgiu um outro jeito de andar: aos pulos, como uma pulga. Podem rir da metáfora. Eu também a acho engraçada. Mas acho que Nietzsche a aprovaria pois dizia que aqueles que só sabem andar não seriam capazes de segui-lo. Seria preciso que fossem capazes de saltar de pico em pico. E acrescentou: “Mas para isso é preciso ter pernas longas…” A Internet nos deu pernas longas. Podemos saltar de pico em pico. Podemos visitar o mundo aos pulos. Quantas revoluções no pensamento, nos arranjos espaciais e temporais, nas trocas de informações, acontecem em decorrência da presença de computadores e da Internet numa escola. Alguns não se dão conta do que está ocorrendo. Pensam que um computador ligado à Internet é apenas mais um artefato tecnológico moderno. Não se dão conta de que ele representa uma transformação radical no nosso mundo, nas formas de conhecer, de comunicar e de ganhar novas competências. Hoje, para ser competente, é preciso aprender a pensar com os saltos da pulga. As linhas retas nos levam por caminhos batidos. Os saltos nos levam a lugares não pensados.

O que há de fascinante neste livro é que o seu autor nos leva passo a passo no processo de construção do projeto de vida daqueles que estão aprendendo. Porque isso é a única coisa que importa. Resumindo: é o sonho em busca da inteligência.

O nosso sonho é que o dueto se transforme em orquestra…

Rubem Alves
Campinas, 6 de março de 2003

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